O governo da Itália promulgou a lei que restringe o reconhecimento da cidadania por “direito de sangue”. A norma foi publicada no Diário Oficial desta sexta-feira (23) e, de forma geral, limita reconhecimento da cidadania a filhos e netos de italianos nascidos no exterior.
As novas regras foram publicadas pelo governo em 28 de março e estão em vigor desde então. No Parlamento, emendas modificaram pontos do texto original. A versão final da lei passa a valer neste sábado (24).
As novas regras impactam diretamente milhares de brasileiros descendentes de italianos que chegaram ao Brasil entre o fim do século 19 e o início do século 20. Isso porque bisnetos, trinetos e gerações mais distantes desses imigrantes perdem o direito à cidadania.
O que muda com a lei?
A nova lei limita o reconhecimento da cidadania italiana a filhos e netos de italianos. Ou seja, bisnetos, trinetos e gerações mais distantes perdem o direito.
Agora, o reconhecimento da cidadania italiana só vale para filhos ou netos de italianos que se enquadrem em pelo menos uma das situações abaixo:
- O pai, mãe, avô ou avó mantém exclusivamente a cidadania italiana — ou mantinha no momento da morte.
- O pai, mãe ou pais adotivos moraram na Itália por pelo menos dois anos consecutivos, depois de adquirirem a cidadania italiana e antes do nascimento ou da adoção do filho.
A advogada Mariane Baroni explica que as novas normas não extinguem o direito à cidadania italiana por sangue, mas restringe seu exercício para bisnetos e gerações seguintes.
“Isso não significa a perda do direito, e sim a necessidade de buscá-lo pela via judicial. A cidadania continua a existir como um direito de origem, garantido pela Constituição e pelas cortes superiores italianas”, afirma.
Como brasileiros serão afetados?
Brasileiros com ascendência italiana — especialmente descendentes de imigrantes que chegaram entre o fim do século 19 e o início do século 20 — poderão perder o direito à cidadania.
Atualmente, é comum que bisnetos ou trinetos solicitem o reconhecimento. Com as novas regras, a nova lei autoriza que esse grupo tenha os pedidos negados.
Em 2023, mais de 20 mil solicitações foram aprovadas no Brasil — um aumento de cerca de 40% em relação a 2022, segundo o Consulado da Itália no Rio de Janeiro.
Já a Embaixada da Itália informou que mais de 38 mil cidadanias foram reconhecidas no Brasil entre 2023 e 2024.
Quem já entrou com o pedido na Justiça será afetado?
Não. O advogado Fabio Gioppo explica que os processos protocolados na Justiça antes da publicação do decreto que impôs as regras pela primeira vez, em 28 de março, não serão afetados. Ou seja, essas solicitações continuam tramitando com base nas normas antigas.
“Para aqueles que protocolaram o processo judicialmente até o dia 27 de março, não precisam se preocupar, porque os efeitos do decreto não atingem essas pessoas”, esclarece.
Como fica quem estava na Itália aguardando pela via administrativa?
Os advogados explicam que quem está na Itália e já tinha o processo administrativo protocolado até 27 de março de 2025 continua regido pela regra antiga. Por outro lado, quem ainda não entrou com o pedido não conseguirá fazer a solicitação.
“Para bisnetos e tataranetos, a única via viável passou a ser a judicial — e é nesse caminho que estamos atuando com base em tese constitucional sólida”, explica Mariane Baroni.
Fabio Gioppo recomenda que quem está na Itália aguardando a retomada de processos desse tipo retorne ao Brasil e faça a solicitação do reconhecimento da cidadania pela via judicial.
Houve alguma alteração no texto original enviado pelo governo?
O Senado e a Câmara aprovaram algumas emendas que alteram o texto original. Uma das principais mudanças foi a derrubada da exigência de que o pai, mãe, avô ou avó do requerente tivesse nascido na Itália para que ele tivesse direito à cidadania.
O texto também exige que o ascendente (pai, mãe, avô ou avó) mantivesse exclusivamente a cidadania italiana. Isso pode impedir o reconhecimento do direito a descendentes cujos antepassados se naturalizaram em outros países.
Para o advogado Fabio Gioppo, essa mudança representa uma falsa flexibilização. Ele também aponta falta de clareza na regra, principalmente quanto à exigência da “exclusividade” da cidadania italiana.
Há novidades para quem quer trabalhar na Itália?
Sim. A nova lei cria uma espécie de visto de trabalho voltado para descendentes de italianos que não têm cidadania ou perderam o direito ao reconhecimento.
Segundo o texto, o governo irá publicar um novo decreto com regras específicas, além de uma lista de países que receberam um alto número de imigrantes italianos nas últimas décadas. Descendentes desses países poderão ser beneficiados.
Ainda não há informações sobre quais países estarão na lista. O Brasil, no entanto, é um forte candidato, por ter recebido milhares de imigrantes italianos entre os séculos 19 e 20.
O advogado Fabio Gioppo explica que a medida prevê a possibilidade de naturalização após dois anos de residência na Itália com o novo visto.
“Essa última medida foi apresentada como alternativa para descendentes que desejam manter um vínculo com a Itália mesmo não sendo mais elegíveis à cidadania direta”.
O que motivou essa mudança?
O governo da Itália argumenta que o número de pedidos tem crescido de forma descontrolada. Segundo o texto, a legislação anterior poderia representar um risco para a segurança nacional e da União Europeia.
Além disso, o governo afirmou que o passaporte italiano estava sendo “vendido” como produto por empresas. As novas normas tentam conter esse tipo de prática.
A medida também é vista como uma forma de combate à imigração, que é uma das principais agendas do partido da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni.
Países da União Europeia tem atuado de diferentes formas para lidar com a questão, principalmente para ter um maior controle sobre a entrada de estrangeiros no bloco.
A lei pode ser contestada?
Sim. Juristas apontam possíveis inconstitucionalidades no texto. Entre os principais pontos, especialistas indicam que a nova lei pode:
- violar direitos adquiridos, ao tentar aplicar novas regras a processos anteriores;
- criar desigualdades entre filhos de um mesmo cidadão italiano, dependendo de onde o pai residia na época do nascimento;
- enfrentar resistência judicial, inclusive na Suprema Corte italiana, onde há jurisprudência favorável a descendentes de italianos — com casos brasileiros.
O advogado Vagner Cardoso defende que a cidadania italiana de descendentes não é algo que se obtém, mas um direito que se reconhece desde o nascimento. Por isso, mudar as regras agora viola um direito fundamental.
“Eles estão tirando o direito constitucional. Nós, descendentes, temos o direito natural de termos nascido italianos. Se colocassem que o direito não valeria mais a partir da data da publicação do decreto, seria uma mudança na lei. Mas a legislação não pode retroagir”, afirma.
Sobrenomes italianos facilitam a cidadania?
Não. Segundo especialistas, não há base legal que relacione o sobrenome ao direito à cidadania. O reconhecimento é feito com base no vínculo sanguíneo (jus sanguinis), e não no nome de família.
A ideia de que alguns sobrenomes “ajudariam” no processo é infundada e sem respaldo jurídico.
Fonte: g1/Wesley Bischoff
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