No dia 15 de agosto, celebra-se a fundação da histórica Cidade de Anchieta, localizada no litoral sul do Espírito Santo, outrora conhecida como Rerigtibá ou Reritiba — nome que, em tupi, significa “lugar de muitas ostras”. Essa data marca um capítulo significativo da história colonial brasileira, representando não apenas a instalação de Missões Religiosas, mas espaços onde fé, cultura, arte e educação se entrelaçaram de maneira singular e duradoura.
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Em 1579, com a autorização de Vasco Fernandes Coutinho – Donatário da Capitania do Espírito Santo, nesse mesmo solo considerado sagrado pelos povos tupiniquins, estabelece-se a Missão de Nossa Senhora da Assunção, fundada por São José de Anchieta, S.J.
Escultórico em Alto Relevo da Assunção de Nossa Senhora sendo conduzida
por anjos indígenas. Artista plástico: Lucas97.
Anchieta chegou à aldeia de Rerigtibá no dia 12 de agosto de 1579, com o objetivo de realizar os trâmites, em diálogo com o morubixaba (cacique) local, para a fundação da Missão. A fundação só foi possível mediante o consentimento indígena, que autorizou o uso de um terreiro sagrado para os tupiniquins, tradicionalmente destinado a sepultamentos e práticas espirituais. Chama atenção que a nova instalação se entrepõe a dinâmica cotidiana entre o local de trabalho voltado a pesca e as malocas no morro da penha.
Os missionários jesuítas que ali se estabeleceram mantiveram os sepultamentos dos nativos, a partir do rito cristão e em solo sagrado. A Tupãoca — termo tupi que significa “Casa de Tupã” — tornou-se uma passagem simbólica entre o mundo físico e o espiritual – Ybaka (Céu). Este gesto de respeito mútuo e escuta intercultural simbolizou, desde o início, a disposição para o diálogo entre cosmovisões distintas. Portanto, a construção da Igreja da Missão torna-se o ponto de convergência do processo de evangelizador e, à sua maneira, ponto de partida do projeto educativo, linguístico e cultural.
A missão foi construída com pedra, cal de ostra, óleo de baleia e outros animais, além de pigmentos extraídos da terra — numa combinação de saberes indígenas com técnicas construtivas jesuíticas. Antes de 1579, Rerigtibá foi inicialmente classificada como aldeia de visitação, recebendo missionários periodicamente, por via terrestre ou fluvial. O trabalho consistia em preparar o terreno para a fundação de estruturas missionárias permanentes como uma Missão (1579). A região já era assistida pelos padres e irmãos jesuítas, que mantinham residência na Vila de Vitória desde 1551, onde fundaram o Colégio de São Tiago e, em anexo, a Igreja de São Maurício.
Segundo registros do Pe. José de Anchieta, S.J., por volta de 1581, havia dez aldeias no Espírito Santo, sendo duas sob administração direta dos padres e outras oito, situadas ao norte e ao sul da vila, equidistantes em 72 mil passos. O Padre Cristóvão de Gouveia, S.J. em visita oficial, reconheceu formalmente as oito aldeias, pois sua localização estratégica, nas embocaduras dos rios, facilitava o deslocamento e o trabalho catequético dos jesuítas (LEITE, 1938, p. 230). O processo de evangelização frequentemente incluía incursões ao interior com o objetivo de alcançar os parentes dos indígenas já aldeados e oferecer-lhes uma nova estrutura sociocultural (CARNIELLI, 2006, p. 62).
Conforme os estudos de Maria José da Cunha (2015), as aldeias jesuíticas se organizavam em dois modelos: as aldeias de missão, como Rerigtibá, e as aldeias de visitação. Essa distinção é corroborada por Simão de Vasconcelos (1943) ao descrever as diferentes tipologias das missões implantadas no Brasil colonial (p. 169–170).
O aprender línguas indígenas sempre foi um dos elementos centrais do processo missionário. A utilização da língua nativa — de base geral tupi — era indispensável para a catequese e o ensino, tornando-se a principal ferramenta evangelizadora. Com base nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, realizava-se uma inserção entre o sagrado e a sabedoria popular, seguindo o lema: “Encontrar Deus em todas as coisas”, ou melhor, “Ver que todas as coisas vêm do alto [de Deus]”. Foi nesse contexto que Anchieta escreveu a maior parte de suas obras teatrais, integrando fé, cultura e elementos educativos.
Para ser concluída a “Tupãoca” levou aproximadamente onze anos (1579–1590). Por ocasião de sua inauguração, o Pe. José de Anchieta, S.J., compôs o Auto da Assunção, peça teatral escrita em tupi, marcada por fortes elementos da devoção mariana e conteúdos catequéticos. A encenação, protagonizada pelos indígenas cristianizados, integrava música, oração e piedade popular. O espetáculo é reconhecido como um genuíno e profundo processo de inculturação religiosa. Atualmente, essa obra é considerada uma preciosidade etnológica, por causa dos seus elementos antropológicos, culturais e históricos.
Segundo a tradição, o auto foi apresentado durante a cerimônia de dedicação da igreja. A imagem central representava a Virgem Maria Indígena — nominada pela comunidade aldeada com o nome “Maria Tupansy”, Mãe de Deus (SORIANO, 2022). No auto, conforme o rito de recepção, ela era recepcionada no porto da aldeia por coros de curumins e, no adro da Igreja da Missão, por chefes morubixabas. Já dentro da Igreja, cada um oferecendo os frutos da terra, ou seja, elementos da fauna e flora locais.
A cidade de Anchieta, portanto, nasceu do encontro entre dois mundos. Sua fundação, em 15 de agosto de 1579, não constitui apenas um marco territorial, mas também um dos núcleos mais relevantes de espiritualidade, educação e produção cultural do período colonial brasileiro.
Eventos de 2025
Em 2025, celebram-se três eventos de profunda importância histórica e cultural:
- 446 anos da fundação da Missão de Nossa Senhora da Assunção;
- 435 anos do Auto da Assunção escrito e apresentado na aldeia de Rerigtibá-Missão de Nossa Senhora da Assunção;
- 470 anos da escrita da “Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”.
Gramática Tupi
A Gramática Tupi, escrita por José de Anchieta em 1555, circulou por quase 40 anos no Brasil como manuscrito, sem, por fim, publicada em Lisboa em 1595. A Arte da Gramática foi crucial para o ensino da língua tupi e o sucesso das ações evangelizadora, consolidando-se como um dos maiores legados culturais e linguísticos do processo de diálogo e encontro intercultural. Tudo isso se insere na máxima inaciana no final dos Exercícios Espirituais: “Em tudo amar e servir”, pois o lema que regia esses homens foi sempre buscar “A maior glória de Deus”.
Ilustração da capa do livro “Maria Tupansy – O Auto da Assunção de São José de Anchieta”.
Autor do livro: Pe. Felipe de Assunção Soriano, S.J. Ilustração: Sergio Ricciuto Conte.
A cidade de Anchieta recebe o nome de seu fundador, em homenagem também aos primeiros habitantes da região, que souberam acolher e inserir José de Anchieta em sua cultura ancestral, aclamado no dia do seu sepultamento com o título de “Apóstolo do Brasil”. O Padre José de Anchieta faleceu em Rerigtibá, no dia 9 de junho de 1597, sendo posteriormente sepultado no Colégio de São Tiago, atual sede administrativa do Governo do Estado do Espírito Santo. Como afirmou o Papa Leão XIII (1878), ao reconhecer a grandeza espiritual de José de Anchieta: “Nele brilha uma esperança viva para o povo brasileiro, porque soube unir, com caridade heroica, a fé e a inteligência, o verbo e a ação.
Texto: Prof. Robson Mattos dos Santos – Gerente Municipal de Cultura e Patrimônio Histórico (Portaria nº 700/2025).
Prof. Ivan Petri Florentino – Coordenador de Patrimônio Histórico e Cultural (Portaria nº 701/2025).
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