Se você fala mais de um idioma, pode ter tido experiências deles se misturando durante o sono. Mas como e por que nossos cérebros criam esses sonhos multilíngues e eles poderiam ter um impacto em nossas habilidades linguísticas na vida real?
Decodificando nossas linguagens de sonho
À primeira vista, pode não parecer surpreendente que muitos multilíngues que fazem malabarismos com diferentes idiomas durante o dia, e mesmo pessoas que estão apenas começando a aprender uma língua estrangeira, também usem essas línguas em seus sonhos. Afinal, a língua que falamos durante o dia geralmente se estende até nossas noites.
Um estudo com pessoas surdas e com perda auditiva constatou, por exemplo, que elas se comunicavam em sonhos da mesma forma que quando acordadas, por meio da linguagem de sinais.
Um olhar mais atento aos sonhos multilíngues revela um quadro mais complexo. Em vez de reproduzir fragmentos linguísticos aleatórios de nossos dias, nosso cérebro parece misturá-los com todos os tipos de preocupações, memórias e problemas do dia a dia. Pode até criar diálogos inteiros em uma linguagem de fantasia desconhecida, ou em uma que os sonhadores encontraram na vida desperta, mas não fale.
Nosso cérebro capta novas palavras ao longo de nossas vidas e elas podem se misturar em diferentes idiomas (Crédito: Emmanuel Lafont/BBC)
Muitos de nós parecem categorizar nossas linguagens oníricas de certas maneiras, por pessoa, local ou fase da vida. Por exemplo, as pessoas no sonho podem falar os idioma que falariam na vida real, enquanto os sonhos sobre o lar da infância tendem a ser na linguagem da infância – embora a ideia de padrões comuns deva ser abordada com cautela, pois houve apenas uns poucos, pequenos estudos de sonhos multilíngues. Além disso, as linguagens dos sonhos podem estar repletas de questões de cultura e identidade, como no caso de uma tailandesa americana que sonhou em comprar um vestido para sua falecida irmã e debateu a escolha com suas sobrinhas em tailandês e em inglês.
Há também sonhos de ansiedade linguística, nos quais o falante luta para se fazer entender em uma língua estrangeira, tem que pegar um trem ou avião de um ambiente linguístico para outro, ou procura palavras em um dicionário de sonhos. Uma participante de um estudo polonês relatou sonhar com uma palavra em inglês que ela não conseguia entender – “acaso” – e depois procurá-la quando acordada. Um participante croata sonhou em tentar e não conseguir se comunicar com um estranho em italiano, alemão e inglês antes de perceber que ambos falavam polonês e riu de alívio.
Os pesquisadores do sono dizem que a mecânica exata e a função de tais sonhos são bastante difíceis de estabelecer, em parte porque os sonhos geralmente ainda são um fenômeno bastante misterioso. O que é muito melhor compreendido, no entanto, é como e por que nosso cérebro processa idiomas e até aprende novas palavras durante o sono. Isso lança pelo menos alguma luz sobre o quebra-cabeça do sonho multilíngue.
Embaralhando palavras em nosso sono
Para entender a ligação entre sono e linguagem, vamos começar com apenas uma linguagem: a sua. Você pode pensar que já domina sua língua nativa há muito tempo, mas na verdade ainda está constantemente atualizando-a. Mesmo os adultos ainda aprendem uma nova palavra, a cada dois dias, em sua língua materna.
“Obviamente, quando somos crianças, aprendemos muitas palavras novas, principalmente nos primeiros 10 anos. Mas estamos fazendo isso o tempo todo, simplesmente não percebemos”, diz Gareth Gaskell, professor de psicologia que lidera o laboratório de sono, linguagem e memória da Universidade de York.
Quando aprendemos uma nova palavra, atualizamos continuamente nosso conhecimento sobre essa palavra até que tenhamos uma compreensão firme dela, diz Gaskell. Ele dá o exemplo de “café da manhã”, uma palavra que a maioria de nós usa com confiança. Mas quando outra palavra com som semelhante aparece, ela pode renovar nossa incerteza em torno dessa palavra existente.
“Em algum momento nos últimos cinco anos, você teria aprendido a palavra ‘Brexit’ [referindo-se ao voto do Reino Unido para deixar a União Europeia], e isso é um forte concorrente de ‘café da manhã’ (breakfast)”, diz ele.
Quando a nova palavra “Brexit” competiu com a palavra “café da manhã”, existente na mente das pessoas, ocorreram confusões. Para usar a nova palavra apropriadamente e distingui-la de palavras com sons semelhantes, precisamos vinculá-la ao nosso conhecimento existente, diz Gaskell. “E para fazer isso, você precisa dormir um pouco”.
É durante o sono que acontece essa integração de conhecimentos antigos e novos. Durante o dia, nosso hipocampo, especializado em absorver informações rapidamente, absorve novas palavras. À noite, ele passa as novas informações para outras partes do cérebro, onde podem ser armazenadas e conectadas a outras informações relevantes. Isso nos ajuda a escolher a palavra certa em qualquer situação e suprimir palavras concorrentes.
Fonte: BBC/Texto: Sophie Hardach
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